10 de janeiro de 2013

Ourum contará suas histórias no TSA



Agricultor, músico e contador: três características da versatilidade de Marco Gottinari que, desde que optou pela agricultura natural em 2004, despertou para o encanto e admiração de Pelotas e região. Marco cresceu rodeado de natureza no Templo das Águas, propriedade da família Gottinari localizada na Colônia São Manoel, 8º distrito de Pelotas. Em 2004, após um incêndio em parte da casa, Marco, que até então utilizava as práticas convencionais de agricultura, optou pela agroecologia e pela permacultura, deixando de utilizar agrotóxicos e maquinários em sua produção. A partir daí diversas mudanças começaram a ocorrer na rotina dos Gottinari. A alimentação natural e a música passaram a reger a propriedade que conta também com um trabalho de educação ambiental voltado ao público infantil, no qual o personagem Ourum conta as mágicas histórias que conhece em seu mundo paralelo. Em entrevista ao TSA, Marco Gottinari contou um pouco sobre esse personagem e sobre a vida que leva no Templo das Águas.

TSA - Após o incêndio os hábitos da família foram modificados. O que te fez mudar?
MARCO - O desejo de não voltar a fazer aquilo que não estava me satisfazendo, e que eu fazia mais pela subsistência, pela grana. E aí como queimou tudo eu tive a oportunidade de uma escolha. Partindo do zero eu pude escolher por onde queria andar e então eu deixei mesmo na mão do universo. Foi quando comecei a compor. Foram dois incêndios: na propriedade e em nossas vidas.

TSA - O que mais mudou da agricultura convencional para a agroecologia/agricultura natural?
MARCO - A vida. Criou um ambiente onde as pessoas percebem, mesmo as mais imperceptíveis, que há algo a mais a ser buscado. Por isso que o nosso turismo criou a regra de não beber álcool, não fumar cigarro... para que as pessoas possam estar mais com a natureza e o mais livre possível, sem trazer seus hábitos. É um turismo que, até então, eu não sei se existe em Pelotas.

TSA - Quando surgiu a música na tua vida?
MARCO - Primeiro eu comecei a compor (depois do incêndio) e depois tocava para alguns amigos. Quem me impulsionou a participar do projeto 277 do Teatro Sete de Abril foi o Jacaré, o percussionista do primeiro disco. Ele disse que era um baita som e que era para eu mandar a música para Pelotas. E aí mandamos. A reação foi: “O Marco, um cara da colônia... olha só o que ele está trazendo para nós”. Foi muito legal isso, ver a reação de quem estava ouvindo o trabalho pela primeira vez.

TSA - Marco, a tua inspiração é o Templo das Águas?
MARCO - Sabe, essa ligação eu não consigo perceber, embora eu seja isso aqui e viva essa realidade. Mas a música, sempre me parece que ela está num outro plano e que passa por aqui porque aqui tem um canal de recepção. Porque eu estou receptivo pra essa melodia, essa música, essa letra. E eu percebo assim... ela nunca saiu ali da cachoeira, eu nunca compus na cachoeira. Componho aqui na rua ou dentro de casa, mas a cachoeira é a minha vida, faz parte de mim, está dentro de mim. Eu percebo que a musica está num outro plano, por isso que meu próximo trabalho vai se chamar Mundo Paralelo, porque eu quero conhecer mais disso e mostrar a forma como eu trabalho na composição. A inspiração não é a natureza, não é a cachoeira, não é o mato. Parece que ela está num outro plano e esse local é a antena que capta, e eu sou parte da antena que registra e que passa adiante.
Templo das Águas: “Que todo lugar seja um templo em que possamos viver e amar profundamente”
TSA - Quando iniciaste o trabalho com crianças?
MARCO - Em 2007/2008, por aí, iniciei aqui no Templo das Águas. Desde quando nasceram meus filhos, toda noite eu contava três histórias para eles. Era uma cobrança deles pequenos. Eu contava três histórias em cima de um título que eles inventavam ou que eu sugeria. E eu lembro que muitas vezes acabava dormindo, porque eu trabalhava com agricultura convencional e ela é bem sugadora, e muitas vezes eles dormiam e eu continuava contando para saber o final da história. Então fui percebendo isso, que no momento em que tinha alguém querendo ouvir eu tinha facilidade de improvisar. Aí surgiu o Ourum o contador de historias.

TSA - Qual é o objetivo desse trabalho?
MARCO - A nossa proposta é mostrar para a criança como era a criança de 20 anos atrás, que improvisava seus brinquedos, que interagia mais com o mato... principalmente a criança do campo. E muitas dessas coisas foram se perdendo, uma delas, por exemplo, é comer coquinho. Acho que é muito significativo quando a gente pergunta para mãe ou para o pai se já comeram coquinho e eles dizem que sim, mas nunca contaram para os filhos ou deram para eles experimentarem. Então a partir dessas informações é que a gente pensou que precisa clarear isso para as crianças. Elas precisam ser crianças um pouco, porque o computador não vai deixar com que elas sejam de verdade.

TSA - Quem é o Ourum?
MARCO - O Ourum existe por toda a parte. É um ser que são milhares mas, ao mesmo tempo é um só, tipo nós. Então, por exemplo, aqui tem um Ourum registrando esse momento. Cada um de nós tem um Ourum que vai nos acompanhar para contar a nossa história num grande concílio, onde todos os Ouruns se reúnem para contar a história do mundo. Só que o Ourum não pode interferir jamais numa história pra não mudar o seu curso. E o Ourum que eu interpreto interferiu, meio sem querer, então ele é julgado no mundo paralelo dos Ouruns e ele é mandado para o planeta Terra para esperar, como um exílio, até terminar o julgamento. Isso é uma peça de teatro. É o momento em que ele vem para o mundo, onde as histórias não têm mais valor, e precisa contar essas histórias. Então a ideia é levar ele num teatro, exatamente onde tem pessoas querendo ouvir a história. O exílio dele aqui na Terra vai ser contando essas histórias. Esse é o panorama do Ourum, mas eu não conto isso. O que eu conto são as histórias que os Ouruns viveram porque, como é um concílio, uns contam histórias para os outros, então todos conhecem a história do mundo. Por isso é que tem muitas histórias, sempre surge alguma mesmo que eu não saiba o que vou contar. Até agora funcionou sempre muito bem.

TSA - Como ele surgiu?
MARCO - Surgiu numa das histórias que eu contava para meus filhos como um personagem que usava-me para contar histórias novas, não histórias já contadas. Desde então eu comecei a usar o Ourum nos shows também (Feira do Livro, Fenadoce), quando o pessoal fica muito disperso. Chamando as crianças se consegue conquistar o público adulto também. E aí eu achei que seria uma boa carta na manga para os shows. Mas o meu sonho mesmo, o meu desejo, é que eu consiga levar ele mais para as crianças em forma de espetáculo, com magia, com luz, com elementos da natureza, bastante coisa. Para ativar mais essa magia.


TSA - Porque desenvolver essa atividade através das crianças?
MARCO - Primeiro porque elas são as mais receptivas e são quem pode mudar esse sistema. São as transformadoras do mundo. Tem que preparar elas porque esse sistema está mostrando uma face muito comercial e eu percebo que o Ourum vai mostrar esse outro lado... o lado natural, onde se pode buscar informações em outros planos que não na televisão e no computador. É o fato de manter a magia. Eu acho um personagem bem interessante para utilizar e, não foi intenção minha, foi uma coisa que aconteceu ao longo do tempo. Tu cria um brilho especial para as crianças, um olhar de que não está tudo acabado. E ninguém fala em computador, você pergunta se eles querem computador ou ouvir histórias e eles vão dizer que é ouvir história. Tu pega eles por um lado que eles não esquecem, um lado muito pulsante na criança que é a fantasia, o ser criança. E então o Ourum é pra isso, para ativar esse lado, para dar um impulso para eles trabalharem.

TSA - Como é a participação das crianças na oficina?
MARCO - Elas acabam interferindo muito. Mas sempre é muito positivo, porque, como tudo é improviso, a gente nunca vai saber o que vem. Um dia aqui tinha um menino bem pequeninho que veio com a mãe, os outros eram adolescentes, e ele interagiu o tempo todo. Eu até subi em cima da mesa porque ele entrou embaixo e aí ele queria subir na mesa... sei que ele acabou virando um personagem da história. Então isso acontece muito com improviso, mas dentro da oficina as crianças tem uma participação para resgatar um pouco da ancestralidade. Até certo ponto né, se não vira uma bagunça, se não conquistar eles vira uma bagunça. A história tem que conquistar. E é isso aí, tem funcionado. E não tem como não funcionar porque a própria interferência deles cria outro rumo para história e aí é uma novidade, é algo que eu nem estava percebendo e passei a perceber. De repente o próprio Ourum usa a criança para interferir, exatamente para dar outro rumo, pra eu entrar mais no ritmo deles.

TSA - Qual é a metodologia de funcionamento das oficinas?
MARCO - A oficina se caracteriza assim: eu conto um pouco da história da alimentação sem veneno e onde a gente pode chegar e o que a gente pode experimentar. Mostrar isso para eles... que não pode sair experimentando tudo, mas que a maioria se come. Fazer eles perceberem esses novos paladares. Principalmente nesses lugares como o da oficina que vamos realizar, poderia ter uns araçás, umas amoras... frutas que as pessoas comeriam. Isso é uma preocupação minha, as crianças não podem deixar de comer as frutas nativas. Elas acabam comendo a maçã, o pêssego... que tem veneno. Quando poderia comer o butiá, o araçá, que não tem. Mesmo que o ambiente da cidade seja um pouquinho mais poluído, a fruta vai ser melhor do que o pêssego, por exemplo, que tem agrotóxico.

TSA - Já pensaste em mudar para a cidade?
MARCO - Ah, hoje não. Quando eu estava na agricultura convencional eu queria sair porque eu me sentia muito escravizado. Eu produzia com veneno e não era feliz. Sempre tinha aquilo que me dizia “Está errado, o que tu está fazendo não está certo”.          A própria terra me dizia, e eu tinha vontade de sair, de abandonar tudo. Mas depois, quando eu comecei a trabalhar de outra forma, não. Agora sim... somos parceiros e eu quero ficar cada vez mais, embora a música tenha feito eu sair bastante, talvez em 2013 mais, cada vez mais. Mas sempre sabendo que eu vou voltar. Por isso que eu quero doar essa casa para ser uma casa de cultura. Porque eu sempre quis trabalhar com cultura, sempre quis ter uma oportunidade dentro da cultura para mexer com música ou qualquer expressão artística, e nunca tinha. O que tinha era em Pelotas. Então, como essa casa é bem grande e precisa de um restauro, eu quero encaixar ela num projeto para ser uma casa de cultura. É uma casa que se adapta perfeitamente a isso. E, dessa forma, eu acho que não me prenderia tanto porque teria mais pessoas e mais movimento o tempo todo, principalmente em épocas fora de temporada. Mas, hoje, sair daqui eu não pretendo. Quero morar um pouquinho mais pra cima, construir uma casa menor de barro.

TSA - Qual é a mensagem do Templo?
MARCO - As mensagens não são só do Templo. A gente tem um slogan do que é assim: “Que todo lugar seja um templo em que possamos viver e amar profundamente”. Então é fazer de cada lugar em que estamos um templo. É construir aqui um templo. Mas a gente pode construir esse templo em qualquer lugar que a gente for. Então a maior mensagem é essa. O templo somos nós que fazemos. Nós que respeitamos os espaços. Nós que criamos esse templo dentro de nós. E o templo com essa conotação de respeito mesmo. Quando se vai numa igreja, se vai respeitoso... não vai fumar numa igreja, não vai beber numa igreja. E é isso mesmo... chegar nos lugares com respeito. Essa é a principal mensagem. Mas hoje, com essa mensagem é claro, a gente acabou aprendendo outras coisas, naturalmente isso engloba o ser integral. Quando se aprende a viver e a amar intensamente, profundamente, as coisas vão clareando. Hoje, o objetivo do Templo das Águas é resgatar no ser humano essa ancestralidade de respeitar a natureza e o nosso grande foco é mostrar que existe outra forma de se alimentar, igualmente saborosa e que não é preciso cozinhar os alimentos. A gente já vive um pouco dessa realidade. Quando vem o pessoal, nós fazemos também algumas comidas cozidas ainda, mas a ideia é criar um ritmo de cozinha em que não se cozinha. Só utilizando os elementos da natureza para alimentação. A gente já tem experimentado e já estamos sentindo um efeito muito legal no organismo. Tu entra no ritmo da natureza. Ela oferece tantas coisas para comer que a gente acaba não experimentando e não despertando esse novo paladar. Essa é uma das coisas, quando servimos algo, a gente usa algum prato com os alimentos vivos para mostrar para as pessoas que não é tão ruim assim e que pode ser até surpreendente para o paladar.

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Na próxima sexta-feira, 11, Gottinari desenvolverá a oficina Ourum – o contador de histórias com as crianças do projeto Jornaleco na Trilha da Sanga, no bairro Santa Terezinha. As atividades terão início às 09h30min na sede do Terezinha Futebol Clube (rua Santo Antônio, 86). Ao meio dia será servido o almoço para as crianças e às 13h sairá o ônibus rumo ao Templo das Águas. A volta está prevista para as 19h.

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