Agricultor, músico e contador: três características da versatilidade de Marco Gottinari que, desde que optou pela agricultura natural em 2004, despertou para o encanto e admiração de Pelotas e região. Marco cresceu rodeado de natureza no Templo das Águas, propriedade da família Gottinari localizada na Colônia São Manoel, 8º distrito de Pelotas. Em 2004, após um incêndio em parte da casa, Marco, que até então utilizava as práticas convencionais de agricultura, optou pela agroecologia e pela permacultura, deixando de utilizar agrotóxicos e maquinários em sua produção. A partir daí diversas mudanças começaram a ocorrer na rotina dos Gottinari. A alimentação natural e a música passaram a reger a propriedade que conta também com um trabalho de educação ambiental voltado ao público infantil, no qual o personagem Ourum conta as mágicas histórias que conhece em seu mundo paralelo. Em entrevista ao TSA, Marco Gottinari contou um pouco sobre esse personagem e sobre a vida que leva no Templo das Águas.
TSA - Após
o incêndio os hábitos da família foram modificados. O que te fez mudar?
MARCO - O desejo de não voltar a fazer
aquilo que não estava me satisfazendo, e que eu fazia mais pela subsistência,
pela grana. E aí como queimou tudo eu tive a oportunidade de uma escolha.
Partindo do zero eu pude escolher por onde queria andar e então eu deixei mesmo
na mão do universo. Foi quando comecei a compor. Foram dois incêndios: na
propriedade e em nossas vidas.
TSA - O que mais mudou da agricultura
convencional para a agroecologia/agricultura natural?
MARCO - A vida. Criou um ambiente onde
as pessoas percebem, mesmo as mais imperceptíveis, que há algo a mais a ser
buscado. Por isso que o nosso turismo criou a regra de não beber álcool, não
fumar cigarro... para que as pessoas possam estar mais com a natureza e o mais
livre possível, sem trazer seus hábitos. É um turismo que, até então, eu não
sei se existe em Pelotas.
TSA - Quando surgiu a música na tua vida?
MARCO - Primeiro eu comecei a compor
(depois do incêndio) e depois tocava para alguns amigos. Quem me impulsionou a
participar do projeto 277 do Teatro Sete de Abril foi o Jacaré, o
percussionista do primeiro disco. Ele disse que era um baita som e que era para eu mandar
a música para Pelotas. E aí mandamos. A reação foi: “O Marco, um cara da colônia... olha só o que ele está trazendo para nós”. Foi muito legal isso, ver a reação de
quem estava ouvindo o trabalho pela primeira vez.
TSA - Marco, a tua inspiração é o Templo
das Águas?
MARCO - Sabe, essa ligação eu não
consigo perceber, embora eu seja isso aqui e viva essa realidade. Mas a música,
sempre me parece que ela está num outro plano e que passa por aqui porque aqui
tem um canal de recepção. Porque eu estou receptivo pra essa melodia, essa música,
essa letra. E eu percebo assim... ela nunca saiu ali da cachoeira, eu nunca compus
na cachoeira. Componho aqui na rua ou dentro de casa, mas a cachoeira é a minha
vida, faz parte de mim, está dentro de mim. Eu percebo que a musica está num
outro plano, por isso que meu próximo trabalho vai se chamar Mundo Paralelo, porque eu quero conhecer
mais disso e mostrar a forma como eu trabalho na composição. A inspiração não é
a natureza, não é a cachoeira, não é o mato. Parece que ela está num outro
plano e esse local é a antena que capta, e eu sou parte da antena que registra
e que passa adiante.
Templo das Águas: “Que todo lugar seja um templo em que possamos viver e amar profundamente” |
TSA - Quando iniciaste o trabalho com
crianças?
MARCO - Em 2007/2008, por aí, iniciei
aqui no Templo das Águas. Desde quando nasceram meus filhos, toda noite eu
contava três histórias para eles. Era uma cobrança deles pequenos. Eu contava
três histórias em cima de um título que eles inventavam ou que eu sugeria. E eu
lembro que muitas vezes acabava dormindo, porque eu trabalhava com agricultura
convencional e ela é bem sugadora, e muitas vezes eles dormiam e eu continuava
contando para saber o final da história. Então fui percebendo isso, que no
momento em que tinha alguém querendo ouvir eu tinha facilidade de improvisar. Aí
surgiu o Ourum o contador de historias.
TSA - Qual é o objetivo desse trabalho?
MARCO - A nossa proposta é mostrar para
a criança como era a criança de 20 anos atrás, que improvisava seus brinquedos,
que interagia mais com o mato... principalmente a criança do campo. E muitas dessas
coisas foram se perdendo, uma delas, por exemplo, é comer coquinho. Acho que é
muito significativo quando a gente pergunta para mãe ou para o pai se já comeram
coquinho e eles dizem que sim, mas nunca contaram para os filhos ou deram para
eles experimentarem. Então a partir dessas informações é que a gente pensou que
precisa clarear isso para as crianças. Elas precisam ser crianças um pouco,
porque o computador não vai deixar com que elas sejam de verdade.
TSA - Quem é o Ourum?
MARCO - O Ourum existe por toda a
parte. É um ser que são milhares mas, ao mesmo tempo é um só, tipo nós. Então, por
exemplo, aqui tem um Ourum registrando esse momento. Cada um de nós tem um Ourum
que vai nos acompanhar para contar a nossa história num grande concílio, onde
todos os Ouruns se reúnem para contar a história do mundo. Só que o Ourum não
pode interferir jamais numa história pra não mudar o seu curso. E o Ourum que
eu interpreto interferiu, meio sem querer, então ele é julgado no mundo
paralelo dos Ouruns e ele é mandado para o planeta Terra para esperar, como um
exílio, até terminar o julgamento. Isso é uma peça de teatro. É o momento em
que ele vem para o mundo, onde as histórias não têm mais valor, e precisa
contar essas histórias. Então a ideia é levar ele num teatro, exatamente onde
tem pessoas querendo ouvir a história. O exílio dele aqui na Terra vai ser
contando essas histórias. Esse é o panorama do Ourum, mas eu não conto isso. O que
eu conto são as histórias que os Ouruns viveram porque, como é um concílio, uns
contam histórias para os outros, então todos conhecem a história do mundo. Por
isso é que tem muitas histórias, sempre surge alguma mesmo que eu não saiba o que
vou contar. Até agora funcionou sempre muito bem.
TSA - Como ele surgiu?
MARCO
- Surgiu numa das histórias que eu contava para meus filhos como um personagem
que usava-me para contar histórias novas, não histórias já contadas. Desde
então eu comecei a usar o Ourum nos shows também (Feira do Livro, Fenadoce),
quando o pessoal fica muito disperso. Chamando
as crianças se consegue conquistar o público adulto também. E aí eu achei que
seria uma boa carta na manga para os shows. Mas o meu sonho mesmo, o meu desejo,
é que eu consiga levar ele mais para as crianças em forma de espetáculo, com
magia, com luz, com elementos da natureza, bastante coisa. Para ativar mais
essa magia.
MARCO - Primeiro porque elas são as
mais receptivas e são quem pode mudar esse sistema. São as transformadoras do
mundo. Tem que preparar elas porque esse sistema está mostrando uma face muito
comercial e eu percebo que o Ourum vai mostrar esse outro lado... o lado
natural, onde se pode buscar informações em outros planos que não na televisão
e no computador. É o fato de manter a magia. Eu acho um personagem bem
interessante para utilizar e, não foi intenção minha, foi uma coisa que aconteceu
ao longo do tempo. Tu cria um brilho especial para as crianças, um olhar de que
não está tudo acabado. E ninguém fala em computador, você pergunta se eles
querem computador ou ouvir histórias e eles vão dizer que é ouvir história. Tu
pega eles por um lado que eles não esquecem, um lado muito pulsante na criança
que é a fantasia, o ser criança. E então o Ourum é pra isso, para ativar esse
lado, para dar um impulso para eles trabalharem.
TSA - Como é a participação das crianças na
oficina?
MARCO - Elas acabam interferindo muito.
Mas sempre é muito positivo, porque, como tudo é improviso, a gente nunca vai
saber o que vem. Um dia aqui tinha um menino bem pequeninho que veio com a mãe,
os outros eram adolescentes, e ele interagiu o tempo todo. Eu até subi em cima
da mesa porque ele entrou embaixo e aí ele queria subir na mesa... sei que ele
acabou virando um personagem da história. Então isso acontece muito com
improviso, mas dentro da oficina as crianças tem uma participação para resgatar
um pouco da ancestralidade. Até certo ponto né, se não vira uma bagunça, se não
conquistar eles vira uma bagunça. A história tem que conquistar. E é isso aí,
tem funcionado. E não tem como não funcionar porque a própria interferência
deles cria outro rumo para história e aí é uma novidade, é algo que eu nem estava
percebendo e passei a perceber. De repente o próprio Ourum usa a criança para
interferir, exatamente para dar outro rumo, pra eu entrar mais no ritmo deles.
TSA - Qual é a metodologia de funcionamento
das oficinas?
MARCO
- A oficina se caracteriza assim: eu conto um pouco da história da alimentação
sem veneno e onde a gente pode chegar e o que a gente pode experimentar.
Mostrar isso para eles... que não pode sair experimentando tudo, mas que a
maioria se come. Fazer eles perceberem esses novos paladares. Principalmente
nesses lugares como o da oficina que vamos realizar, poderia ter uns araçás, umas
amoras... frutas que as pessoas comeriam. Isso é uma preocupação minha, as
crianças não podem deixar de comer as frutas nativas. Elas acabam comendo a
maçã, o pêssego... que tem veneno. Quando poderia comer o butiá, o araçá, que
não tem. Mesmo que o ambiente da cidade seja um pouquinho mais poluído, a fruta
vai ser melhor do que o pêssego, por exemplo, que tem agrotóxico.
MARCO - Ah, hoje não. Quando eu estava
na agricultura convencional eu queria sair porque eu me sentia muito
escravizado. Eu produzia com veneno e não era feliz. Sempre tinha aquilo que me
dizia “Está errado, o que tu está fazendo não está certo”. A própria terra me dizia,
e eu tinha vontade de sair, de abandonar tudo. Mas depois, quando eu comecei a
trabalhar de outra forma, não. Agora sim... somos parceiros e eu quero ficar
cada vez mais, embora a música tenha feito eu sair bastante, talvez em 2013
mais, cada vez mais. Mas sempre sabendo que eu vou voltar. Por isso que eu
quero doar essa casa para ser uma casa de cultura. Porque eu sempre quis
trabalhar com cultura, sempre quis ter uma oportunidade dentro da cultura para
mexer com música ou qualquer expressão artística, e nunca tinha. O que tinha
era em Pelotas. Então, como essa casa é bem grande e precisa de um restauro, eu
quero encaixar ela num projeto para ser uma casa de cultura. É uma casa que se
adapta perfeitamente a isso. E, dessa forma, eu acho que não me prenderia tanto
porque teria mais pessoas e mais movimento o tempo todo, principalmente em
épocas fora de temporada. Mas, hoje, sair daqui eu não pretendo. Quero morar um
pouquinho mais pra cima, construir uma casa menor de barro.
TSA - Qual é a mensagem do Templo?
MARCO - As mensagens não são só do Templo.
A gente tem um slogan do que é assim: “Que todo lugar seja um templo em que
possamos viver e amar profundamente”. Então é fazer de cada lugar em que
estamos um templo. É construir aqui um templo. Mas a gente pode construir esse
templo em qualquer lugar que a gente for. Então a maior mensagem é essa. O
templo somos nós que fazemos. Nós que respeitamos os espaços. Nós que criamos
esse templo dentro de nós. E o templo com essa conotação de respeito mesmo.
Quando se vai numa igreja, se vai respeitoso... não vai fumar numa igreja, não
vai beber numa igreja. E é isso mesmo... chegar nos lugares com respeito. Essa
é a principal mensagem. Mas hoje, com essa mensagem é claro, a gente acabou
aprendendo outras coisas, naturalmente isso engloba o ser integral. Quando se
aprende a viver e a amar intensamente, profundamente, as coisas vão clareando. Hoje,
o objetivo do Templo das Águas é resgatar no ser humano essa ancestralidade de
respeitar a natureza e o nosso grande foco é mostrar que existe outra forma de
se alimentar, igualmente saborosa e que não é preciso cozinhar os alimentos. A
gente já vive um pouco dessa realidade. Quando vem o pessoal, nós fazemos também
algumas comidas cozidas ainda, mas a ideia é criar um ritmo de cozinha em que
não se cozinha. Só utilizando os elementos da natureza para alimentação. A
gente já tem experimentado e já estamos sentindo um efeito muito legal no
organismo. Tu entra no ritmo da natureza. Ela oferece tantas coisas para comer
que a gente acaba não experimentando e não despertando esse novo paladar. Essa
é uma das coisas, quando servimos algo, a gente usa algum prato com os
alimentos vivos para mostrar para as pessoas que não é tão ruim assim e que pode
ser até surpreendente para o paladar.
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Na próxima
sexta-feira, 11, Gottinari desenvolverá a oficina Ourum – o contador de histórias com as crianças do projeto
Jornaleco na Trilha da Sanga, no bairro Santa Terezinha. As atividades terão
início às 09h30min na sede do Terezinha Futebol Clube (rua Santo Antônio, 86).
Ao meio dia será servido o almoço para as crianças e às 13h sairá o ônibus rumo
ao Templo das Águas. A volta está prevista para as 19h.
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